Primeiro é bom explicar alguns elementos constituintes desta história.
Então, falar do Durico: um moleque franzino e desnutrido (que eu próprio apelidara assim porque ele me lembrava um esmirrado e desdentado Durico, tentado como ele só, que conheci na adolescência). Esse Durico às vezes chegava pra consultar no Posto de Saúde vindo de seu Córrego dos Machados – e esse nome de córrego vai dar o que falar nessa história…). Às vezes nem tinha mais ficha, mas ele dizia à Auxiliar: “fala pro Dotô que é Durico”, usando a compaixão que ele me sabia sentir. De forma que até o pai – um bebum de marca maior que chegava em casa toda noite e batia em mulher e filhos – chamava-lhe Durico; o apelido pegou mesmo.
Agora, comentar o roubo do machado: o vereador João, herdeiro da fazenda dos pais, herdou também uma relíquia na forma de um raro machado que passara de pai para filho há algumas gerações. Pois, recentemente João estivera às voltas com denúncias registradas e tal pois sumira misteriosamente o machado de sua estimação. Desconfiou do pai do Durico, que trabalhara bêbado na fazenda um certo dia, na época do roubo do machado. A polícia até deu busca, em vão. E o Delegado, diante da cara decepcionada do vereador, dera-lhe um tapinha no ombro dizendo: “Calma, seu João, calma que no final dá certo.” Mas é que João não sabia quando seria o final.
Enfim, breve explanação sobre o Córrego dos Machados. O nome é antigo, os moradores atuais dizem que ali residiram sitiantes de sobrenome Machado, cujo parentesco atual se perdeu no tempo, e que deram nome ao local. E, por ironia do destino, ao longo daquele córrego, nos últimos tempos, 3 mulheres haviam matado os maridos a machadadas! De modo que, quando a gente atendia algum morador de lá e perguntava: “tem machado em casa, cumpade?”, o povo ria até.
Então, agora que já temos em mente o mirrado Durico, o bebum seu pai, o vereador João, seu machado roubado e o Córrego dos Machados com suas machadadas, vamos ao relato.
Numa fresca manhã de setembro eu estava na praça da Igreja trocando prosa quando passou o vereador João, num velho Jipe, parou perto de mim, me chamou: “Olha o que temos aí atrás no Jipe.”. Bem, inocentemente virei os olhos para a parte posterior do Jipe e dei com aquele quadro: um corpo inerte, encolhido no chão metálico da carroceria do veículo com a cabeça partida ao meio, fragmentos de cérebro literalmente escorrendo pela lataria do piso. Admirei aquilo: “Puxa! O que é isso, João ?”. Ele, arrancando devagar o veículo, apontando para trás com o polegar: “Foi Durico. É o pai dele. Chegou em casa bêbado, escornou no banco da cozinha. A mãe pegou o machado, por sinal aquele meu machado desaparecido, e perguntou se Durico tinha coragem de acertar o pai. Ele disse que, se tampassem a cara dele, ele tinha coragem de partir o pai. Ela forrou um pano de prato na cara do marido, Durico pegou o machado e pimba!, uma única machadada, o cara nem tremeu. A polícia está vindo aí atrás trazendo ele. ‘Té já.”
O Jipe saiu devagar, agitando lentamente a poeira, e fiquei estático imaginando aquele minguado garoto levantando um baita dum machado e golpeando a cabeça do próprio pai escornado. Mãe do Céu !
Aí, o carro da polícia também parou perto de mim, cabo Rufino me cumprimentou e me mostrou, no banco de trás, Durico espremidinho no meio de dois soldados sisudos. Abaixei-me para chegar o rosto na janela traseira, aberta, do carro: “Durico, meu filho, como é que foi acontecer isso?”. Ele levantou a magra mãozinha, balançando o dedo como dizendo não: “Não, dotô, não fui eu, eu juro por tudo enquanto é santo que não fui eu, eu não faço uma coisa dessas, não!”. Eu interpelei: “Como não, Durico, se o João acabou de me contar a história, que você até pediu para cobrir a cara dele antes de dar a machadada?”, ao que ele recostou-se, pôs as mãos no colo e disse: “Ah, bom. Eu achei que o Senhor tava falando é do roubo do machado. Rachar pai eu rachei mesmo, mas o machado não fui eu que roubei não, senhor.”
Para ele, ser taxado de ladrão era pior que matar o pai.
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