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O RELÓGIO DELATOR

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Era uma loja de malas no centro de Belo Horizonte. Foi meu primeiro emprego de carteira assinada, aos 13 anos (Carteira Profissional de Menor, lembram-se?). E dali fui despedido simplesmente porque perguntei as horas. Estranho? É, fui mandado embora do trabalho porque quis saber das horas. Tudo bem que não era o melhor momento para perguntar horas, mas foi por isso. Vou contar como foi.

. Era uma loja ampla de duas portas largas e vitrines enormes em cada porta, cujas soleiras eram arrematadas por mármores claros. Minha função era de faxineiro, mas eu tinha de abrir a loja um pouco antes das 7:00 hs, fazer a faxina geral e – argh! – limpar detalhadamente aqueles enormes vidros das vitrines, manter o recinto limpo durante o dia e, após 18 hs, todos tendo saido, fechar a loja. Eu puxava para baixo as portas de aço usando um pesado gancho de ferro guardado no alto de uma prateleira, dali retirado sempre pelo gerente, e ali por ele guardado. No final do dia, eu pedia ao seu Alcyr a ferramenta para descer as portas, usava o gancho, e o devolvia ao seu Alcyr..

Acho bom dar uma pincelada na minha rotina diária daquela época. O almoço era de marmita requentada em fogareiro. Na parte da manhã ou da tarde não havia lanches, sem dinheiro para. Meus horários, por força das circunstâncias, eram bem regulares: desjejum às 5:50 em casa, almoço requentado às 12:30 hs,  pão com manteiga às 18:45, antes de ir para o colégio, e mexidão às 23:15 hs, quando chegava em casa.

O gerente era o austero seu Alcyr (com y), altão, com seus negros cabelos de brilhantina formando um topete na fronte. E havia mais 4 funcionários, entre os quais Maria Augusta, uma balconista branquinha e tímida, que vai ser envolvida neste caso. O proprietário, Dr. Vercini, que tinha outros tipos de lojas, passava lá toda tardinha para pegar a féria. O patrão mesmo, acabava sendo o seu Alcyr, com aquele protruso abdome na ponta da gravata..

No início, achando que podia agradar o patrão, eu pegava jornal e álcool e dava um duro danado em detalhada limpeza naqueles vidrões das vitrines, “as meninas dos olhos” da loja, usada para expor frasqueiras, maletas, malas e malões. Aí, quando eu dava por terminada a limpeza, saía para fazer outras coisas. Então, o gerente, com aquela postura soberba de guardião de madame, se aproximava das vitrines e esquadrinhava os vidros, pomposo, com as mãos na cintura e os polegares presos no cinto. E me chamava: “Zé Rodrigues!, vem cá.”, apontando um certo local. Eu chegava, e encontrava um pequeno embaçadinho próximo das molduras de madeira. E pensava “da próxima vez você não vai achar nada, seu olhudo!”. No outro dia, eu me esmerava de novo, vasculhava aqueles vidros, tudo ficava um brinco, aí eu me afastava. E lá vinha ele, arqueando uma das sobrancelhas diante das vitrines. “Zé Rodrigues!, vem cá.”, e apontava um cantinho com aquele dedão peludo. E lá estava o sujinho que eu não vira. Depois de algum tempo nessa luta, resignado com minha hipermetropia, passei a fazer a limpeza habitual, sem agonia, e quando ele me chamava, eu ia tranqüilo para complementar. Ele pode não saber até hoje, mas por muito tempo foi meu empregado assim, usado como fiscal de limpeza de vidros.

A dona Mercês era a esposa do seu Alcyr,. Era uma bondosa e humilde senhora, com seus longos cabelos acastanhados derramados sobre as costas magras. Eu a conhecia porque, eventualmente, tinha que ir à sua casa levar ou buscar algo, a mando do seu Alcyr. Ela me passava aquele ar de pessoa sofrida, naquela paciência com as duas filhas pequenas. Nas raras vezes que dona Mercês passava na loja, era, apenas por questões domésticas rápidas com o marido.

Eu já suspeitara de haver algo entre seu Alcyr e a contida funcionária Maria Augusta. Talvez pelo jeito dele quando se dirigia à moça, ou pela subserviência dela, não sei, mas havia alguma coisa. Ou então eu tinha a mente poluída, podia ser.

Num fim de tarde, loja vazia, funcionários nos fundos da loja ultimando suas coisas, acabo minha derradeira varrida do dia, passo pano úmido nos mármores claros do chão das portas e dou de cara com dona Mercês entrando calmamente na loja. “Ôi, dona Mercês, já chamo seu Alcyr pra senhora.”, e volto para dentro da loja, de vassoura na mão, e vejo que Dr. Vercini também entrara, vagarosamente como costume, pela outra porta. Seu Alcyr estava por trás do balcão, bem ao lado de Maria Augusta, ambos apoiados sobre o vidro do móvel, ela apoiada em ambos os cotovelos e seu Alcyr apoiava-se no cotovelo direito e o outro braço pendia oculto entre ele e ela. Houve assim, uma certa inquietação por parte do casal, ao me verem ali, de frente para eles, e eu fiquei parado por um instante avaliando rapidamente a situação, dona Mercês candidamente aguardando na porta da loja, Dr. Vercini chegando por trás de mim. Como eu pressentisse um constrangimento, não chamei o gerente mas, atrapalhadamente, como a aquilatar o momento de pedir o gancho, fiz a única coisa que não podia, dadas as delicadas circunstâncias do momento: perguntei as horas.

Seu Alcyr, elevou o corpo tirando o cotovelo direito de cima do balcão e tentando fletir o braço esquerdo, ainda parcialmente oculto,   para olhar o relógio. E, então, foi aquela terrível seqüência de fatos. O punho esquerdo, oculto entre ele e Maria Augusta, se prendera a algo nas vestes da moça. Seu Alcyr, então, fez força para tracionar para cima o braço e desequilibrou Maria Augusta, que inclinou-se para o outro lado, agarrando-se no balcão para não cair no chão. Dona Mercês adiantou-se, mais solícita que eu, para amparar, pelo lado de fora do balcão, a moça desequilibrada e Dr. Vercini, parado atrás de mim, fez uma interjeição de susto. Mas o forte seu Alcyr tinha puxado com vigor o braço, e suspendeu o punho junto com o vestido da funcionária, de tal maneira que, com um ruído de pano rasgando, o relógio apareceu, mas preso a ele, pendia uma calcinha lilás.

Bem, até a cena da calcinha lilás presa no relógio do seu Alcyr, eu registrei bem. Depois, foi uma mistura de atos: funcionária correndo, esbaforida, para os fundos da loja, esposa com as duas mãos na cabeça chamando Nossa Senhora, Dr. Vercini pegando o gancho e abaixando rapidamente as portas da loja, seu Alcyr tentando, até com os dentes, desgrudar aquela calcinha lilás firmemente presa no seu relógio e, finalmente, eu chamado ao escritório e recebendo minha carta de demissão.

Foi assim que terminou meu primeiro emprego de carteira assinada.

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