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O MILAGRE DE JAQUELINE

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O MILAGRE DE JAQUELINE

Esse extraordinário caso necessita de duas partes.

Primeira Parte: um parto frustrado e um útero rasgado

O sábado transcorria monótono com aquela persistente chuvinha, em Materlândia. Já noite alta, Dona Lourdes chegou lá em casa, vinda do Turvo, com aquele barrigão danado, acompanhada do marido, seu Francisco: “Tá quase na hora, Doutora”, disseram para Ivonilde. “Podem ir andando lá pro Posto que já vamos lá”, orientamos, e eles, naquele jeito vagaroso, se foram, seu Francisco na frente e ela, segurando a barriga, atrás, sem se importarem com a chuvinha fina que enlameava as ruas de terra vermelha.

Não tínhamos pedido a ampliação do Posto de Saúde para fazermos “pequenas cirurgias e até partos”? Pois é, chegou a hora de fazer um. Materlândia, com seus 5000 habitantes, tinha, até nossa chegada, um Postinho de Saúde, para atendimentos clínicos e vacinação. O resto, mandava para Sabinópolis. O prefeito da época (que Deus o tenha) atendeu nosso pedido: reformou a unidade e comprou alguns materiais e equipamentos complementares, maca ginecológica, mesa de parto, leitos hospitalares e tal. Teve inauguração festiva com aglomeração popular, discurso, Q-suco e tudo. Inclusive já tínhamos “internado” uns pacientes, com soro na veia e tudo, foi aquele comentário na cidade (“É, esses dois doutores são batuta!”).

Chegamos, o casal estava aguardando junto à porta de entrada da Unidade, protegidos da chuva. Abrimos, entramos, entraram. Ivonilde foi com Dona Lourdes lá para dentro, examinar. Fiquei trocando prosa com seu Francisco. Ia inteirar 9 filhos. O anterior era homem, já eram 4 casais. Para o pai, agora tanto fazia se fosse homem ou mulher. Mas “homem é sempre melhor, né Doutor ?”. Ivonilde voltou, achava que evoluía bem, colo para 6-7 cm, cabecinha encaixada, contrações eficientes. Isso, para uma mãe de 8 filhos, equivalia a dizer que o parto era pra já. Seu Francisco foi buscar a bolsa com roupas do Zito. Eu resolvi dar um pulinho rápido lá em casa, alguns quarteirões abaixo, “Não demora não, Rô, aqui tá pra qualquer hora e posso precisar de ajuda”, Ivonilde avisou.

Fui em casa, fiz xixi, bebi um café quentinho e subi de novo. Seu Francisco já aguardava na salinha, entrei para ver as donas. Ivonilde, pensativa, fazia toque em Dona Lourdes. “E aí, Neguinha ?”.  Ela não respondeu mas mostrou-me as luvas descartáveis para que eu pegasse uma e também examinasse a nossa paciente. Sabe aquela cabecinha de feto que encalacra, que empaca e vai formando aquela bossa crescente e preocupante ? Era isso. Multípara é assim, uma hora está de um jeito e, de repente, complica. Assinclitismo,  só vai nascer por cesareana. E agora, José? Bom, pedir um carro para levar a dona para Sabinópolis, antes que o feto entrasse em sofrimento. Acontece que a ambulância estava para BH, o prefeito não se encontrava, o seu secretário viajara junto e nosso carro não era bom de lama. Não me apertei, chamei na casa de Zito Monteiro, um pouco abaixo. Ele tinha um Jipe, essencial nesses dias lamacentos. “É pra já, Doutor, pegamos a dona e vamos pra Sabinópolis.”.

E foi assim que, nessa madrugada chuvosa, eu e Dona Lourdes no banco da frente do Jipe e seu Francisco, no desconfortável banco de trás, sacolejamos estrada afora em direção a Sabinópolis. Zito Monteiro, com seu chapéu enterrado na cabeça, dirigia atento para a escuridão da noite, que os fracos faróis do velho veículo iam transformando em barrancos vermelhos e vegetação barrenta. Dona Lourdes, de tempo em tempo, contorcia-se de cólicas, em caretas de mudo esgar, eu com o braço esquerdo sobre o banco às suas costas: “Calma, dona Lourdes, já vamos chegar.” A cobertura plástica do Jipe de 1957 deixava respingar água de chuva sobre meu ombro direito, por mais que eu cuidasse de manter fechada aquela janelinha de lona. Mas naquela circunstância, um ombro molhado é o que menos importa. Seu Francisco seguia silencioso atrás, só Deus sabendo as apreensões que seu coração passava, como marido e pai. Dezoito quilômetros à frente, adentramos o irregular calçamento de Euxenita, e agora aqueles pulos surdos dos pneus do carro passaram a um repicar seco sobre irregulares pés-de-moleque. Ainda teríamos mais 12 quilômetros aaté Sabinópolis.

Foi ali, trafegando no silêncio da madrugada, sons de pneus no calçamento molhado ecoando nas paredes das casas que passavam, sob aquela tênue iluminação pública de Euxenita, que Dona Lourdes, com um débil ái, desabou sobre o Zito Monteiro, desacordada. Sob minha mão direita que tateava um ponto de apoio no abdome para trazê-la de volta à poltrona, senti um feto se movimentando em meio às alças intestinais: o útero se rompera! Tendo aprumado novamente a paciente, agora gemente, ajudados por seu Francisco fazendo força por trás, falei pro motorista: “acelera, Zito, o útero dela rasgou, agora é uma questão de minutos!”. Seu Francisco imediatamente inclinou-se sobre o nosso banco procurando ver o rosto da esposa: “Lourdes! Lourdes! O que é que houver, mulher?” Ela abriu levemente os olhos, fraca, dolorida, e ele, com a firmeza que a tensão permitia, firmava, por trás, as mãos nos ombros da enferma.

A estrada barrenta corcoveava à nossa frente como querendo fugir da habilidosa direção do Zito Monteiro e eu tive a impressão que aquela rodovia era um potro rebelde que o Zito dominava tendo por rédeas a direção do seu Jipe. Volta e meia, a paciente gemia e tateava à frente como querendo se apoiar no nada mas, eu e seu marido contínhamos seus braços e ela novamente se acomodava. Eu palpava freqüentemente seu pulso à guisa de segurança e lá estavam os batimentos que me indicavam vida, por enquanto. Relâmpagos ocasionais clareavam sua face que, pálida à luz branca repentina, mais exangue parecia. Pelo tônus muscular aparente, eu podia, grosseiramente, avaliar que, felizmente, a paciente estabilizara o quadro. E o feto esboçava ocasionais esperneios sob a pele da barriga. Poucos já conduziram paciente com hemorragia interna em evolução por uma estrada esburacada, numa madrugada de chuva contínua, em um Jipe de 1957. Só quem já teve essa terrível experiência, pode aquilatar o dilema dessa empreitada.

Foi uma eternidade de apreensão e sofrimento mas entramos barulhentamente em Sabinópolis. Nas casas, úmidas e caladas, enfileiradas à beira da rua, pessoas certamente acordaram com o ressoar do carro acelerado. Paramos na porta do Hospital, o motorista desceu e rapidamente entrou portaria adentro. Voltou empurrando uma maca, com uma esbaforida auxiliar de enfermagem que, enquanto ouvia rapidamente meu relato, ajudava-nos a colocar na maca a paciente semi-inconsciente, dizendo “por uma incrível coincidência, Dr Joaquim está aqui dentro acabando um parto.” E ela até hoje não sabe o alívio que me proporcionou com essa salvadora informação. E, ao nos apressarmos ao longo do corredor, Dr. Joaquim assomou no outro extremo: “Que confusão é essa, Zé Rodrigues ?” Eu expliquei “Um parto encalacrado, professor. O útero rompeu em Euxenita.” O velho médico apressou-se: “Caramba, pode levar direto pro bloco.” Fizemos a curva no corredor em T e entramos na ante-sala do Bloco Cirúrgico. Duas auxiliares foram preparando a paciente e acompanhei Dr. Joaquim para uma rápida assepsia das mãos. Vestimos os roupões e, lépidos, calçamos as luvas. Ao entrarmos na sala de cirurgia, a paciente já entrava por outra porta em maca empurrada pelas assustadas auxiliares “Ela está desmaiada!”. Passamos a paciente para a mesa cirúrgica e Dr. Joaquim, enquanto ditava nomes e doses de medicamentos de imediata aplicação, orientava sobre o sangue O-negativo a ser transfundido já de pronto, em outra veia para isso puncionada. “Aqui não temos tempo de aguardar ação de remédio nenhum.” E incisou de comprido o abdome de dona Lourdes, abrindo rapidamente do umbigo ao púbis, em habilidosa manobra que expôs o peritônio, que ele incisou cuidadosamente, expondo um abdome sossobrando líquido sanguinolento. Pegou um lânguido feto pelos pés, pinçou e seccionou o cordão umbilical e me entregou o recém nato: “É uma moça, Zé Rodrigues, mas não tem mais jeito, esse tempo todo fora do útero…”. Amontoei o feto numa bandeja próxima, a auxiliar levou para a sala contígua e nos detivemos naquele profuso sangramento abdominal, identificando estruturas, inventariando os achados, pinçando vasos sangrantes, limpando a cavidade, mãozadas e mãozadas de sangue e coágulos jogados nas baciinhas que a auxiliar da sala nos expunha. Naquela labuta, fomos supreendidos pela voz de Ivonilde, cujo vulto surgiu em uma das portas: “Vim atrás de vocês. Como está aí? Cadê o recém nascido ?”. Eu resumi: “Ó, nega, o útero rompeu na viagem, parece que o neném não escapou, levaram pra outra sala.” Ivonilde saiu de cena e voltei à luta na barriga de dona Lourdes. Pudemos suturar toda a rotura uterina e a paciente, recebendo soros e sangue, iniciava uma reação animadora. Enquanto recompúnhamos a cavidade, num silêncio pesado de tensão e expectativa, ouvimos um distante gemido de recém nascido. Dr. Joaquim comentou: “A danada chegou a tempo de fazer outro parto.” Lavamos copiosamente a cavidade, com uma infinidade de frascos se soros previamente aquecidos, até que o líquido foi aspirado claro. Fechamos plano a plano, já com a paciente necessitando de complementação anestésica venosa. Enquanto Dr. Joaquim ultimava a sutura de pele, retirei-me para ver, na sala de parto contígua, o que estaria fazendo Ivonilde. Não havia outra paciente. Na verdade, Ivonilde conseguira, para minha estupefação, reanimar a filha de Dona Lourdes, que, ainda que sem tônus muscular evidente, fazia estertores faciais a cada vez que suas secreções faríngeas eram aspiradas. “Já vou pegar veia e levar pra estufa”, ela disse. Voltei na sala cirúrgica e disse, da porta, para Dr. Joaquim: “Professor, aquele gemido é da menina dessa paciente mesmo! Parece que Ivonilde conseguiu um milagre.” O experiente cirurgião olhou-me pensativo e disse, como que informando à paciente ainda semi-desfalecida: “É, essa criança não vai ter um cérebro perfeito, infelizmente.”

Segunda Parte: um motim frustrado e um milagre revelado

O Lacraia era um time que jamais deixou de participar do campeonato municipal de Sabinópolis. Nesses poucos anos de edição do torneio, agora com mais times, ainda não tinha sido campeão, mas era time de chegada e tradição, com praticamente o mesmo grupo de jogadores nos últimos anos. Naquele início de campeonato, contudo, havia um problema: nós, jogadores, andávamos por demais insatisfeitos com o técnico Ique. Não sei bem, mas eram vários fatores juntos: sua falta de definição nos treinos, uma certa falta de autoridade, e também o fato de ter sido sempre perna de pau. Quem nunca soube jogar vai lá saber orientar um time? Era isso que a turma dizia. Então, eu, Divino, Jiló, Pico, Paulinho e Preto combinamos o motim. Seria assim: eles me pegariam no consultório às 16:45 hs em ponto, na quarta-feira, dia do treino, que começava sempre às 17 hs. Chegaríamos no campo antes do Ique, reuniríamos a turma: “Ó gente, não dá mais com o Ique; ele chegando, vamos dar um basta, falou?”. E pronto, era isso que todo mundo queria, eu diria umas poucas e boas pra ele e logo chamaríamos outro pro seu lugar.

Portanto, a secretária já sabia: quarta-feira, marcar só um retorno pras 16:30, tipo resultado de exames, coisa rápida. E naquela quarta, desde cedo, no café da manhã, na corrida de leito, no atendimento do Posto de Saúde, no almoço, eu repassava várias vezes tudo que eu diria ao Ique, pensava naquele enfrentamento, previa bate-boca, imaginava algum incauto tirando o dele da reta, essas coisas. Já saí de casa pro consultório com o calção por baixo para não atrasar nada. Foi uma tarde também tensa. E conduzi cada atendimento com o pensamento fixo de não atrasar, de tal maneira que atendi o paciente do resultado de exames exatamente às 16:30 hs. Reli a ficha do paciente, interroguei, olhei os exames. Enquanto examinava rapidamente, durante a ausculta, ouvi a barulhenta Brasília do Divino encostar na porta do consultório: vrum-vrum-vrum-vrum. Termino o rápido exame físico, faço a receita.

16:46, eu levo o paciente até a sala de espera, e avisto Paulinho na Brasília, com o braço pra fora da porta, tamborilando na lataria, na sua impaciência. Volto para dentro do consultório para pegar minhas coisas: 16:47. Ao voltar à sala de espera, maleta em punho, suando na testa, deparo com uma criança de uns 7 ou 8 anos parada à minha frente, vestidinho novo chegando nos pés, cabelo comprido em rabo-de-cavalo, em posição de sentido, respiração ofegante, impertigada, como pronta a recitar um poema. “Mostra pra ele, Jaqueline”, diz-lhe uma senhora parada à porta, enquanto a secretária, conhecedora da minha pressa, fingia paciência com um risinho amarelo. Eu redargui, tentando ser paciente: “Mostrar o quê, mocinha bonita?”, ao que ela levantou o queixo e começou, solene, a recitar: “Salve Rainha, mãe de misericórdia…”, e foi falando, com todas as vírgulas, toda a enorme Salve-Rainha, absolutamente bem decorada e ensaiada, dando entonação teatral em algumas expressões e, inclusive, com movimentos amplos de mãos e braços. “…A vós bradamos, os degredados filhos de Eva…”. A Brasília soava lá fora incessantemente: vrum-vrum-vrum-vrum, enquanto Paulinho tamborilava na porta. 16:49 hs. “… E, depois deste desterro, mostrai-nos a Jesus…” E a pequena artista, firme no seu pedestal, depois de uma interminável encenação, arrematou: “.. para que sejamos dignos das promessas de Cristo.”, e impertigou-se novamente num súbito silêncio, ao que imediatamente acorri com frenéticos aplausos, “Vivô! Vivô!”, e fui conduzindo a artista sala afora, numa patente demonstração de total satisfação com o espetáculo mas também com pressa para deixar o recinto. Mas a acompanhante instantaneamente bloqueou minha passagem, novamente colocando-me à frente a sua pequena atriz, admoestando-a: “Jaqueline! Como é que pode, minha filhinha? Você ensaiou tanto, para mostrar pra ele! Vamos, novamente…”, mas interrompi ante a falta de tempo para assistir novamente à mesma peça: “Mas está maravilhooooso, Dona! Não precisa repetir não, Jaqueline, você foi muito bem. A que se deve mesmo essa apresentação?”, mas a menina, no seu vestidinho de festa, às 16:50 hs, obediente, já reiniciara no seu parlatório: “Salve Rainha, mãe de misericórdia…”, e, mantendo-se firme nos seus pezinhos, desandou novamente no seu recital, “…a vós suspiramos, gemendo e chorando…”, falando frases entoadas e dramatizadas, balançando membros e cabecinha, às vezes fechando os olhinhos como a sentir profundamente cada pedido à santa. “… Ó doce sempre Virgem Maria…” E, sem coragem para cindir a sua apresentação, estaquei em pé, mãos à frente do corpo segurando a maleta: 16:52 hs. “… para que sejamos dignos das promessas de Cristooooo.”, e findou fazendo mesura oriental pensando ser essa a parte que faltara na primeira edição. Eu entrei em cena novamente, maleta presa entre as pernas, aplaudindo ruidosamente, dando pulinhos em direção à acompanhante, posto que esta estava mais próxima da porta: 16:54 hs. “Mas que espetáaaaaaculo, Dona! Que proeza a da Jaqueline! Creio que agora não faltou nada, não é?”. E a acompanhante, irritada, passando as mãos pelos cabelos, segurou Jaqueline pelo braço: “Não senhora, não senhora! Pode fazer direito! Vamos!”, e segurou meu braço com a outra mão como a impedir-me de deixar a sala. Jaqueline, mais que depressa, para meu desespero, reencetou a cantirena: “Salve Rainha…”.  Ao som de um tapão na porta da Brasília, Paulinho disse lá fora “Ah!, pode dar o fora que não dá mais tempo.”, e o ronco do motor do velho carro ressoou rua afora, ao que eu intervi prontamente, às 16:55 hs, tampando – com cuidado – a boquinha da mocinha: “Mas, francamente Dona! O que, afinal, estará faltando na oração da menina?”, e a senhora, com um muchocho, respondeu: “Ta faltando, no final, ela dizer Amém!”

Bem, às 16:57 hs, tendo desistido de treino e de motim, sentei-me no banco da sala de espera e pedi esclarecimentos: “Pois bem, Dona, porque mesmo essa mocinha veio recitar para mim assim ?”. E a resposta daquela senhora fez com que valesse a pena a tensão do dia e a frustração do momento: “Eu sou Maria de Lourdes, não lembra Doutor? Há 8 anos atrás o senhor morava em Materlândia, me trouxe quase morta para Sabinópolis, meu útero rasgou e tudo, lembra? Aí, o Dr. Joaquim pensou que Jaqueline não seria normal da cabeça, não foi? Pois aí está ela. Dr. Joaquim, que Deus o tenha, não estando mais aqui, trouxe essa moça, perfeita e linda, para o senhor ver.”

Realmente, Ivonilde fizera um milagre.