No segundo mês de estágio no Pronto-Socorro eu já não era nem sombra daquele trêmulo acadêmico que fizera a primeira sutura sob os olhos compreensivos do competente e saudoso clínico Dr. Célio de Castro. Agora, mais seguro e despachado, a pouca experiência já me permitia ter desenvoltura nos meus atendimentos ali no ‘vietnan’.
Naquela tarde, foram tantas as ocorrências envolvendo suturas que chegou mesmo, por algumas horas, a faltar material esterilizado. A ordem era economizar material, devido à grande demanda. Tinha uns dias assim. A gente achava bom quando embananava o corredor, pois treinávamos mais e o tempo passava mais depressa.
Por fim, chegou a vez de um troncudo soldado, de farda e tudo, com uma toalha ensanguentada enrolada na mão direita, que aguardara pacientemente a sua vez. Apontei a maca onde ele deveria se sentar, e perguntei:
– “Que foi isso, meu amigo?”
A gente sempre mantinha um colóquio que servia para colher o relato do caso e também para relaxar o paciente.
– “Ah, sô, nem te conto”, respondeu ele parado em pé ao lado da maca. “O nosso Capitão lá pediu para eu trocar o Rex de canil para fazer limpeza, e deu nisso!” Dizia ele, enquanto desenrolava calmamente a toalha, sem se importar com a aparência deplorável de sua mão.
– “O Capitão me disse: estou pedindo a você, que é forte, mas tenha cuidado; esse Rex não é de brinquedo!”
Exposta a lesão, o que se via era uma mão de pele retalhada, onde se reconheciam os dedos, apenas ensangüentados, mas palma e dorso da mão eram coágulo puro, o sangue já seco.
– “É, mas já vi mãos piores.” Eu disse.
A gente sempre tinha que tentar encorajar o paciente, mas, na verdade, eu nunca vira mão pior. Solicitei a um auxiliar que me trouxesse material de pequena cirurgia. Eu comentei:
– “É, esse Rex tem os dentes afiados, hem?”
Ao trazer o embrulhinho de pano, o auxiliar avisou que esse era o último esterilizado, pra ter cuidado.
– “Mas, Ferreira, como foi que aconteceu?” Perguntei, vendo o seu sobrenome etiquetado no bolso da camisa da farda, enquanto ele se sentava na maca para apoiar a mão na mesinha auxiliar, onde eu já desenrolava o material de pequena cirurgia.
Pela altura cômoda da mesinha e pela possibilidade de ampla colaboração do paciente, optei por trabalhar com o paciente assim sentado. Aquela extensa lesão ia exigir muita atenção e assim, de pé, eu teria melhor visibilidade. Além disso, mordida de cachorro requer outros cuidados ainda após a sutura, coisa que eu providenciaria a seguir.
– “Olha”, explicava ele, “o Rex é um pastor alemão baita mesmo. E brabo, viu? Mas eu não tenho medo de nada nessa vida, tá? Fui lá, não peguei nem focinheira, entrei no canil, disse você é brabo, né?”
Acomodei a mão em uma compressa sobre uma bandeja inox. E o soldado continuava seu relato:
– “É bravo, né? Pois eu também sou, e agora você vai pro outro canil, quer queira, quer não. Ele rosnou mas me respeitou. Tá vendo, danado, aqui não é qualquer caco de recruta não, aqui é soldado Ferreira, bicho!”
Eu já calçara luvas e limpava a lesão, gazes na pinça, com ajuda do auxiliar, que jorrava água oxigenada e/ou soro fisiológico, e a laceração, pouco a pouco, ia se desvelando por sob aquele sangue seco. O paciente, sentado, ia contando sua história gesticulando com a mão esquerda, livre.
– “Aí peguei ele no cangote, pela coleira e pretendia sair arrastando. É, nego, pode até trovejar que dessa mão você não solta mesmo!”
Agora, uma última borrifada de soro fisiológico, explorar melhor os retalhos para ver sua profundidade e anestesiar. Mordida de cachorro a gente faz a limpeza definitiva sob anestesia, pois sendo assepsia mais rigorosa, é bem dolorida.
– “Então, no que eu ia puxar o danado, ele, não sei como, rodou a cabeça de lado e travou os dentes na minha mão, as mandíbulas travando a mão toda, meu!”
Eu, estudando melhor a lesão, vi que era uma questão de pontos internos poucos, para firmar estruturas, mas o resto era reconstituir pacientemente a pele mesmo. O diabo não é tão feio quanto se pinta. Nem lesão de tendões eu via. E houvera insignificante perda de substância. Estava sob controle. Era só anestesiar para a limpeza de fato.
– “É, seu Rex, você já tá agarrado aí, não tá? Então, já que ele já estava mesmo preso assim na minha mão, rosnando com os dentes presos na minha pele, arrastei ele pelo terreiro todo, as patas até riscando o chão, cheguei no outro canil, joguei ele lá dentro, e só aí ele largou a minha mão. E ainda quis voltar pra cima de mim, que não sou bobo nem nada, bati a portinha na cara dele! Aí, vendo o negócio, o Capitão disse: é, Ferreira, você é batuta mesmo!. Pega um carro, gente, e leva esse batuta pro pronto-socorro ”
Eu interrompera minha atividade por duas razões; para ouvir o final daquele admirável relato e para avisar que iria anestesiar, que dói um pouquinho, que era necessário, que iam ser algumas picadinhas para cessar a dor e tal, aquelas coisas de sempre. Os professores sempre diziam: ‘gente, agulha e seringa devem ser manuseadas de costas para o paciente, e expliquem direitinho o que vai ser feito; isso evita que o doente fique mais nervoso, entendem ?’ Eu disse:
– “Pô, Ferreira, você é durão mesmo, xará! Bom, agora vamos anestesiar, tá?”
Encurtei o costume pois vi que aquele caboclo não precisava de muita prosopopéia. E, enquanto falava, já fui pegando seringa e agulha e aspirando o anestésico no vidrinho que o sorridente auxiliar me expunha.
– “Anestesiar?” perguntou, atento e agora assustado, o soldado. E, vendo seringa e agulha na minha mão, arregalou os olhos, abriu a boca e, inesperadamente, num relance, aquele brutamontes amoleceu o pescoço e desabou de lado, tombando barulhentamente sobre a cabeceira da maca, ao mesmo tempo que, sem tempo de qualquer amparo, sua mão arrastava mesinha, forro e tudo, espalhando pelo chão todo o meu último material de pequena cirurgia, sob o arregalado olhar dos auxiliares próximos.
Eu ia lá imaginar que o herói batuta do capitão, que arrastou um cachorrão pelo canil afora com a boca cravada em sua mão tivesse medo de agulha?
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