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JÚLIO CESAR

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JÚLIO CESAR


Capítulo 1

Quando meu pai saiu para levar Ti’Beto pro hospital numa quinta cedinho, não consegui tirar da cabeça que, assim, visto de longe, cabisbaixo, conduzindo a charrete, meu pai parecia mais um vulto triste acompanhando um enterro.

Naqueles dias da ausência do meu pai, nossa casa ficou numa tristeza danada e, de noite, na hora da reza, minha mãe falava pra gente pedir sempre a Deus pro Ti’Beto voltar bem. Nós pedíamos, mas apenas pedíamos, pois que criança só espera mesmo de Deus que papai não bata, que o espinho saia do pé e que a goiaba não tenha bicho. No mais, é apenas uma questão de repetir e ir logo pra debaixo da coberta.

E quando meu pai apareceu alguns dias depois, barbudo, cansado, minha mãe nem mesmo correu ao seu encontro, mas esperou na varanda com as mãos entrelaçadas sobre o ventre, com aquela ansiedade quieta das pessoas que sabem esperar sem desesperar. Quando meu pai subiu as escadas, riu triste, abraçou cada um de nós e se sentou no banco, já sabíamos que era hora de ir brincar e nós quase fomos. Quase fomos porque Dadico e Léia me convenceram a ficar na escuta atrás da porta e eu concordei, pois a idéia deles era a mesma minha. Então descobrimos que Júlio César não tinha mais pai.

Não me lembro direito como foi que deram a notícia pra Tia Naná, mas a partir daquele dia, ela nunca mais foi a mesma. A vitalidade que ela sempre mostrava subindo as escadas e o sorriso brejeiro que ela abria quando vinha fazer uma fofoca, morreram sem avisar. Quando a gente ia à casa do Ti’Beto (e mesmo ele tendo morrido a gente não falava da casa de outra forma), na maioria das vezes ela estava debruçada no parapeito da varandinha da frente, sempre olhando para um ponto fixo longe que eu nunca descobri o que era, mas que devia ser alguma coisa lá no alto da lavoura. Ou, então, ela ficava diante do fogão de lenha, esquentando as mãos com os braços esticados, assim com a cabeça inclinada pra um lado, como se sonhasse acordada. Dadico, um dia, me disse que ela estava ficando doida, mas Léia protestou dizendo que só homem é que ficava doido. Eu, cá comigo, sabia que menino nunca fica doido e isso era o bastante.

Até o Biliu, com seu latido escandaloso, que sempre acompanhou Ti’Beto nas caçadas, pegou uma mania de choramingar triste pelo corredor ou, às vezes, depois de farejar repetidamente o ar, deitava com a cabeça apoiada nas patas e ficava lambendo tristemente as unhas.

Mesmo minha mãe tendo explicado pra nós que neném não sente, nós passamos a notar tristeza no Júlio César. Pois não tendo Ti’Beto para andar pela casa, dando pulinhos, com ele no colo, deu para chorar e espernear por qualquer coisa. E como tia Naná andava muito avoada, e a gente, vira-e-mexe, estava na casa do Ti’Beto, era sempre Léia que acabava balançando o berço e acalentando o bebê (Júlio César tinha um jeito de chorar dando gritinhos e a gente achava ele chorando mais bonitinho que rindo). Dadico e eu não cuidávamos do neném porque no nosso código de honra, era vergonha homem tomar conta de menino.

Capítulo 2

Depois de alguns dias, meu pai, percebendo o estado da Tia Naná, resolveu trazer os dois para morarem com a gente, ao que ela concordou com o seu silêncio, agora costumeiro, e com aquele olhar parado que Dadico afirmava ser igual ao olho da louca do Bonfim. O Biliu deve ter gostado porque ficou todo serelepe, abanando o rabinho quando meu pai trancou a casa deles e ajeitou os móveis do Ti’Beto num quarto vazio lá de casa.

Nessa época, eu, Dadico e Léia, depois de uma reunião, decidimos que não era bom aqueles estranhos ficarem de vez lá em casa e enviamos um representante para falar com meu pai. E, como sempre, o representante fui eu. E, como sempre, choveram guaspadas de uma antiga vara de marmelo nas costas do representante. Então, reclamei com o Dadico, mas ele me respondeu com dois murros nas costas e o assunto ficou esquecido até que eu ficasse grande para poder bater nele.

Eu, Dadico e Léia não gostávamos do jeito que minha mãe tratava a Tia e o Júlio César. Na verdade, às vezes, parecia que ela esquecia da gente. Então, numa reunião extraordinária, ficou decidido que o Júlio César tinha que crescer a qualquer custo, pois aquela esmerada atenção com ele era pelo fato dele ser um neném. E, conforme um plano meu, numa tarde em que o Júlio César estava dormindo sozinho no quarto, nós resolvemos crescer ele à força. Dadico, que era o mais forte, pegou nos braços, eu e Léia nas pernas. E esticamos, Dadico prum lado, eu e Léia pro outro. Puxamos, até sentir que Júlio César já tinha crescido um pouco. Mas, já aí, ele estampava um berreiro tão angustiante que, ao barulho de passos, escondemo-nos todos sob o berço. Quando senti as primeiras guaspadas de marmelo, eu vi que meu bumbum ficara do lado de fora do esconderijo.

Depois, quando já estávamos no terreiro, rindo da surra, foi que o Dadico lembrou que tinha de me meter o pé na bunda porque fora ela a delatora do nosso esconderijo. Mas aí, não sei porque cargas d’água, Léia confessou que não resistira e dera um beliscote na perna do Júlio César (beliscote era o nome que Léia dava para aquela sua mania de beliscar prendendo a pele da gente entre as unhas dos dedos mínimo e polegar, torcendo em seguida, coisa que doía pra burro!). Como é covardia homem bater em mulher, Dadico deu só um chute na canela dela, mas ela enraiveceu e montou de beliscote nas costas dele e o agressor teve de fugir. Mas ela corria mais que ele, e foi uma graça ele sair correndo assim empinando o peito pra frente para tirar as costas do alcance dela, e os beliscotes chovendo e o Dadico fazendo caretas de dor.

Era assim mesmo quando Léia ficava com raiva. A solução era aproveitar quando ela ainda não estava nervosa pra gente aprontar com ela. Aí ela chorava, era gostoso. Mas se esperasse ela ficar com raiva, nossa!

Mas o Júlio César causou muitos outros transtornos lá em casa. Um dia em que ele estava brincando no berço e não tinha ninguém olhando, aproveitei para fazer careta pra ele, pois quando faço careta braba mesmo, fico tal e qual o capeta. E eu estava assim, com o cabelo bem bagunçado, com os dedos arregaçando a boca e os olhos bem esbugalhados, quando meu pai entrou no quarto. Inicialmente ele só deu uma risada e depois falou que menino que fica fazendo careta, costuma nunca mais voltar ao normal e ficar com a cara de capeta ou, no mínimo, igual a cara da louca do Bonfim. Meu Deus!, eu quase morri de medo sem ele saber. E corri no espelho e verifiquei que, realmente, minha cara estava diferente. Pra mim, acabou o dia, acabou a vida (como é que eu ia poder namorar com aquela cara?). A solução que encontrei foi arranjar um boné e começar logo a adorar boné caído na cara. Ninguém entendeu aquela neurose súbita por boné caído na cara, mas depois todo mundo parou de invocar comigo e esqueceu. Assim como eu também esqueci do boné e da cara de capeta, muito embora ainda hoje, de vejo em quando, fico achando minha cara meio esquisita.

Capítulo 3

O tempo foi passando e, sem notarmos, já estávamos até brincando de pique com Júlio César. Ele era diferente da gente, uma pele mais lisa, um cabelo mais ajeitado na cabeça. Como eu, ele também tinha um pouco de raiva do Dadico e chorava sempre que o Dadico pegava ele. Da Léia ele já gostava mas era só ela armar os dedos em beliscote e ele berrava adoidado e passava um tempão sem querer olhar pra ela. Por essas e outras, fui sendo eleito o babá de Júlio César. Lógico, não vou esconder, que tentei de tudo pra ele desgostar de mim. Mas, se eu armava um beliscote, ele morria de rir, se eu empurrava ele como o Dadico fazia, ele chorava, só que no meu ombro. Quando eu fazia pequenas caretas (eu tinha medo de fazer a cara do capeta), ele ria e me imitava. Além do mais, ele adorava o Biliu, que não saia de perto de mim. Depois – devo confessar -, eu via nos choros do Júlio César uma boa arma contra murros, beliscotes e varinha de marmelo. Se eu beliscava ele, chovia guaspadas na Léia. Choro, sem marcas de beliscote, era surra pro Dadico. Por isso, beliscotes e murros foram ficando cada vez mais raros e passamos a formar uma turma até bonita de se ver.

O terreiro e os arredores da casa ficaram pequenos para o tanto de brincadeira que fazíamos. Só não gostávamos de brincar de pique-esconde, pois o Júlio César sempre queria ser o pegador, e encontrava todo mundo numa rapidez tão grande que perdia a graça. Ele era um menino muito inteligente e divertido, e era danado pra inventar maneiras diferentes de fazer as nossas brincadeiras. Continuava com aquela mania de chorar à toa, mas também qualquer gracinha que a gente fazia, despertava sua risada num instante. Teve uma certa época que ele andou meio gripado e minha mãe achou melhor manter ele quieto dentro de casa por uns dias. Pois, eu, Dadico, Léia e Biliu ficamos dentro de casa também, pois sem o Júlio César as brincadeiras ficavam chué.

Por essas alturas, a tia Naná já estava mais alegrinha um pouco. Também, só tinha que estar, com tanta gente passando lá em casa, quase todos as noites, só pra ver as papiotagens que o filho dela fazia. Ficava aquele converseiro na sala, e Júlio César falando os nomes das cores ou reconhecendo letras num pedaço de jornal. E as visitas admirando.

Eu, Biliu, Dadico e Léia fazíamos várias reuniões para poder bolar um meio de combater aquelas visitas, pois elas ficavam alisando o cabelo de Júlio César, abraçando o Júlio César, e isso deixava a gente puto da vida. As primeiras pedradas que demos de moitas ocultas resultaram em terríveis guaspadas de marmelo e muita risada de Júlio César.

Depois, resolvemos fazer caretas pras visitas. Léia combinava a careta da boca com um cabelo tampando os olhos, Dadico revirava os olhos com o linguão para fora e eu arregaçava a boca com os dedos e fazia o olho ficar caolho. Pois foi o nosso castigo. A partir de então, éramos sempre chamados para fazer caretas na sala para diversão das malditas visitas, que gostavam de ver caretas. Mas nós nem estranhamos muito isso não, pois gente grande tem mesmo umas manias muito doidas. Já pensou o que é sair de casa, andar um tempão e chegar noutra casa só pra ver um menino? Que eu lembre, nós nunca saímos de casa e andamos um tempão só pra ver uma pessoa grande.

Então, passamos a dormir mais cedo para não darmos mais atenção pras visitas, e aproveitar o dia, sem visitas, para brincar bastante com o Júlio Cesar.

E assim, o tempo foi passando.

Capítulo 4

Quando ficamos sabendo que Tia Naná recebeu carta de uma prima de Belorizonte, convidando ela e Júlio César para passar uns tempos lá, ficamos com muita raiva dessa prima enxerida. Depois, ficando mesmo certo que a Tia aceitou o convite e que os dois iriam dali a uma semana, ficamos numa tristeza danada. Papai sempre falava pra nós que cidade grande é uma loucura, gente correndo pra todo lado, ninguém entende ninguém, uma barulheira danada e nenhum menino brincando na rua. Por isso, usávamos o dia todo para brincar com o Júlio César, brincar muito mesmo. Dadico falou que não precisávamos nos preocupar, pois o Júlio César chegando lá e vendo que não dava pé, arrumava um berreiro danado e voltava. Mas eu pensava o pior e achava que lá podia ter muita coisa pra distrair e que os dois poderiam nem querer mais voltar. E a gente brincou tanto e o tempo passou tão depressa que, quando chegou o dia, a gente queria mais uma semana.

E, na hora de ir para a estação de trem-de-ferro, nós queríamos todos arrumar o Júlio César e pentear ele e admirar ele, e uma vontade danada de chorar, todo mundo. E a charrete chegou muito depressa na estação e o trem já estava lá, parecendo uma cobra cheia de buracos, cochilando e esguichando fumaça pela venta. Foi naquela hora ali que descobri em mim uma vontade incrível de ir pra cidade grande. Não sei se era só para ir com o Júlio César, mas me deu um nó na garganta e eu chorei. Na verdade, só o Dadico não chorou; e ficou assim, enfunado, sério, olhando o trem se afastar e o Júlio César, da janelinha do trem, acenando, acenando, acenando.

Na volta, a casa nem parecia que era a nossa. Estava quieta, triste, escura. Não é só gente que tem sentimento não, casa também tem. Quando entramos em casa, tudo estava muito parado, fui dormir cedo. O Dadico e a Léia também foram dormir e só o Biliu ficou lá no terreiro cheirando o chão. Mamãe xingou a gente, pois que também não tinha morrido ninguém. Mas, até o xingo dela não foi como antes, pois a voz dela soou triste demais pra nós.

É muito chato descrever toda a tristeza daqueles dias, mas realmente a casa ficou uns tempos muito esquisita.

Naquela época, papai deu pra nós uma bicicleta com garupa, mas explicou que Dadico já era bem grandinho e ia passar a buscar o leite todo dia cedinho, e ia usar a bicicleta pra isso. Pra ensinar, meu pai segurava a bicicleta pra gente subir, depois ia empurrando devagar e orientando. Quem primeiro saiu lá na frente tocando o pedal e corcoveando foi a Léia, nós até batemos palma. Dadico, porque tentou pedalar depressa demais, caiu com a cara na terra e esfolou o queixo, mas garantia que não doeu. Já-já, nós três estávamos dominando bem a bicicleta. E, fora do horário do compromisso do Dadico, a gente revezava para andar na bicicleta ou um carregava os outros dois no quadro e na garupa.

O tempo foi passando e nossa casa foi ficando outra vez mais alegrinha.

Também, por esses dias, recebemos carta da prima enxerida de Belorizonte, informando que tudo estava bem por lá e que o Júlio César até estava aprendendo a escrever, num Jardim de Infância. Mamãe começou a escrever uma carta para mandar para eles na Capital e perguntou a cada um de nós o que gostaríamos de dizer pro Júlio Cesar. Eu quis que mamãe perguntasse como ele fazia pra brincar lá, já que não tinha menino brincando na rua. Léia mandou um beijinho pra ele. Dadico mandou dizer que estava tudo bem. Lembro de nosso pai pegar o cavalo para levar a carta até o correio, mas ficamos um bom tempo sem receber outra carta.

Capítulo 5

E foi um tempão depois, num dia em que recebemos uma carta da Capital e pensamos que era mais um comunicado normal, que mamãe avisou que Tia Naná e Júlio César vinham passar uns dias lá em casa.

Puxa!, nós quase morremos de alegria e a simples idéia de poder novamente brincar com o Júlio César deu-nos uma tremenda felicidade e aquele mês foi feito de muita arrumação nos brinquedos e muita preparação de novos brinquedos no terreiro e várias idéias que apresentaríamos pro Júlio César. O Dadico preparava os estilingues, Léia revisava os esconderijos do terreiro. O Biliu se mostrava muito satisfeito da vida, saltitando pra lá e pra cá e eu planejava mostrar pro Júlio Cesar todas as nossas brincadeiras novas.

E, depois de um século de expectativas muito alegres, chegou o dia em que meu pai foi na estação buscar os novos belorizontinos. Depois que meu pai saiu, demos uma corrida pela casa e notei que tudo estava brilhando, alegre, pois isso eu já sabia: a casa depende do jeito que a gente sente.

Quando a charrete apontou na estrada com dois vultos grandes e um menor atrás, corremos até a rua e aguardamos, saltitantes, os nossos esperados visitantes. Quando a charrete parou, tia Naná desceu, risonha, abraçou a gente, meio vexada, e ajudou o Júlio César a descer. Ele riu meio sem graça e notamos que tinha uma chupeta azul na boca, apesar de já tão grandinho. Na verdade, ele crescera muito, o cabelo estava grande e ajeitado sob um gorro marrom, combinando com a cor de um bonito macacão. Dadico disparou a falar de tudo que havia de novo, muito agitado e Léia avisou logo que perdera a mania de beliscar e, não sei porque, tive a impressão que ele nem se lembrava mais dos beliscotes. Aliás, parecia que ele não se lembrava mais de muita coisa mesmo, e a toda explicação do Dadico, ajeitava o bico na boca numa semgraceza danada. Quando subimos a escada da varanda, o Dadico já estava mais quieto e Léia saiu logo para servir o café, vendo que Júlio César, muito calado e sem graça, não mostrava entusiasmo pelas coisas que ela falava. Eu fiquei olhando aquele menino arrumadinho e compreendi que o Júlio César chorão e brincador que foi para Belorizonte, não voltou o mesmo. E nem bulimos nos brinquedos todos que preparamos, pois não tivemos coragem de chamar o Júlio César lá pra fora, assim, tão limpinho e envergonhado.

De repente descobri que a casa ficou, assim, um pouco sem graça.

Dadico tinha sumido, Leia evaporou pra cozinha, Biliu ficou num canto da varanda, quieto. Dei uma desculpa e saí correndo pra fora, pois havia coisa melhor a fazer do que brincar com Júlio César.

(escrito em 1977)