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A MENINA DO BRAÇO INCHADO

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O jogo estava muito apertado. Eram times de veteranos, e tal, mas era sempre assim, Virginópolis só vinha com timão para enfrentar a gente. Era um jogo lá e outro cá, sempre nos sábados à tarde. O time de veteranos deles era tradicionalmente forte, apesar da maior média de idade dos seus jogadores, mas que jogavam e deixavam jogar, era bola riscando a grama pra lá e pra cá.

Pra não perder o jogo, eu trocara o plantão no Hospital, diante da insistência do técnico, que também era jogador:

– “Dá um jeito, doutor, com sua presença é que teremos onze, custei juntar o time completo, gente viajando…”

E tinha mais essa: eles tinham reservas, mas nós só tínhamos onze. Nem machucar era permitido.

Quando jogávamos na nossa cidade, havia uma combinação: se surgisse alguém me procurando, o juiz soava um longo som com o apito e todos paravam onde estavam – às vezes lembrava aquela brincadeira de criança: “Estátua!”. Então eu ia até a beira do campo, resolvia o que fosse, e voltava pro campo; novo silvo longo com o apito, e o jogo continuava de onde havia parado.

E aí, ataque pra lá e pra cá, partida acirrada, uns jogadores gritando com os outros, as clássicas reclamações ao juiz, torcida xingando bandeirinha, surgiu aquele carro, levantando poeira ao entrar na terra seca da entrada do nosso espaço esportivo. Nessa situação, todos já olhavam para mim, devia ser alguma emergência. Mas continuamos a difícil partida. O motorista saiu do carro e, saltando o pequeno alambrado, gritou para o juiz:

– “Seu Juiz, por favor, quem é o doutor aqui?” O apito trilou, jogada interrompida, jogadores parando onde estavam e o árbitro, como eu já esperava, me avisou:

– “É pro senhor, doutor!”

Jogo parado, aquele impaciente silêncio no campo, fui até a beira do gramado:

– “Pois não.” E o rapaz perguntou:

– “O senhor é o Dr. Rodrigues?”, e quando anuí, ele perguntou:

– “Lembra a Patrícia, lá do Serro, que você gessou o braço dela?”

Bem, eu revirei os meus arquivos e não encontrei nenhuma Patrícia do Serro, cujo braço eu gessei, mas ele nem mesmo esperou minha resposta e emendou:

– “Pois é, ela está lá no hospital com o braço inchado.”

Perguntei, ainda esperançoso:

– “É uma emergência, amigo? Ela está com muita dor?”

E ele, com expressão de preocupado:

– “É sim, doutor, ela está muito incomodada com aquele braço.”

Ainda que não me ocorresse, assim de bate-pronto, uma Patrícia do Serro, braço gessado que incha é sempre complicação. Lembrando ou não, urgia verificar. Eu não teria mais paz para continuar jogando.

Olhei pro técnico, no meio de campo, expectante, aguardando o desfecho de nossa conversa para autorizar ao juiz a continuação do disputado jogo. A contragosto, gritei pra ele:

– “Ô chefe, não dá para ficar, tenho que ir lá no hospital.”

E ele, correndo na minha direção e gesticulando:

– “Mas, doutor, estamos no final do primeiro tempo, não dá para esperar um pouco? Não temos ninguém para entrar, sô!”

Eu insisti, entre preocupado e impaciente:

– “Não dá, cumpade, a moça tá lá no hospital me esperando e eu não vou ter mais paz para ficar aqui.”

E, sob alguns protestos de outros companheiros, saí do campo e disse ao rapaz do carro:

– “Pode me esperar lá no hospital que passo em casa e vou rápido.”

Enquanto aquele carro manobrava e saía, levantando poeira, peguei minhas coisas no vestiário, entrei no meu carro e voei para casa. Um banho rápido e sigo depressa para ver o caso. E sempre matutando: “Mas, meu Deus, onde será que errei neste caso? Eu sempre radiografo, manipulo, radiografo, coloco gesso, radiografo de novo, para prevenir problema! Será que comi mosca nesse caso?”

Acabo o rápido banho, entro de novo no carro e saio lépido para o Hospital.

Suor ainda molhando a testa, entro no hall do hospital, algumas pessoas aguardando atendimento do colega plantonista, quietas, sentadas nos bancos de madeira da sala de espera. Olho em volta, e não vejo ninguém de quem eu me lembrasse e nem mesmo alguém com pinta de caso urgente. Pergunto, em voz alta, aos pacatos presentes:

– “Tem alguma Patrícia, do Serro, aqui?”

Levanta uma tranqüila mocinha clara, cabelos castanhos presos por uma tiara:

– “Sou eu, Doutor.”

Não reconhecendo a moça, perguntei:

– “Eu gessei seu braço, Patrícia?”

E ela, candidamente estendendo um braço direito perfeitamente normal:

– “Gessou, o senhor pôs gesso nesse braço há dois anos atrás.”

E completou, exibindo o outro braço:

– “Mas, agora é esse outro que inchou, depois que caí anteontem.”

Subiu-me uma fúria peito acima, vontade esgoelar informante e paciente. Então, eu gesso um braço há 2 anos, ela cái anteontem e me vem agora com o outro braço doendo? É essa a emergência que fez me buscarem no campo?

É cada uma! Bem feito, por eu não perguntar as coisas direito e cair na onda do informante. Eu não precisava ter abandonado minha partida de futebol. Agora, possivelmente o segundo tempo já em curso, nem mais daria tempo para eu retornar à partida.

Bem, numa situação em que alguém te busca no campo de futebol por um motivo torpe, torna-se inútil qualquer discussão filosófica. Restava-me o atendimento proposto.

– “Pois bem, Patrícia, vamos lá dentro ver isso.”

Ela fez sinal para o acompanhante, que também entrou comigo até a salinha de gesso.

– “Tem mais alguma coisa doendo?”, perguntei, antes de proceder ao exame do punho.

A moça, agora sentada, fez não com o indicador. A gente, médico de roça, aprende a ter esses cuidados. Vi logo que se tratava de uma simples torção de punho, que, certamente, em poucos dias melhoraria espontaneamente, até mesmo sem nenhum tratamento médico.

Bem, se eu já tinha perdido mesmo o jogo, se me chamaram no campo de futebol por um motivo desses – que exigiria, em condições normais, uma rápida orientação, uma prescrição de antinflamatório, a cobrança do valor equivalente a uma consulta médica, e pronto -, então era melhor valorizar o atendimento, pois teriam que pagar um pouco mais por esse desaforo. Então, após detido exame, paciente sentada, adaptei respeitosa tala gessada envolvendo do cotovelo à palma, coloquei tipóia com faixa larga sustentando o braço.

– “Prontinho, Patrícia!”, exclamei, colocando a risonha paciente de pé e olhando minha obra.

Aí, o acompanhante, colocando a mão no ombro da moça, perguntou:

– “Quanto foi, doutor?” E eu, sem pestanejar, falei o valor de 10 consultas!. Ele se espantou, tirando o talão de cheques do bolso traseiro:

– “Pôôô, carinho, heim doutor?”

Enquanto ele preenchia o cheque, pensei “Toma danado!, por me tirar do meu futebol com informação enganosa!.”

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