Apavorado!
Eu estava absolutamente desnorteado ali, sentado, chorando, na porta da venda (fechada) do seu Inácio, bicicleta Phillips deitada do lado. Agora era uma questão de sumir, fugir, desaparecer. Mesmo vestido assim, com um simples short, sem camisa, eu tinha de cair fora, não havia tempo para mais nada, ninguém sabia onde eu estava, e, antes que alguém me encontrasse ali, eu tinha que agir. Fugir pra onde? Pra São Paulo! São Paulo é grande, eu desapareço no meio daquela multidão, ninguém me encontra.
E se prenderam meu pai pelo que fiz? Dizem que é assim: se um menor mata alguém, vai preso o pai. Decerto que a menina morrera no atropelamento. Já era de tardinha, eu vinha pedalando a Phillips lá do início da vila, alguma coisa tilintou na coroa, forcei a vista em direção ao pedal para discernir o que era, e quando alguém gritou, eu já estava encima. O pai correu prum lado, mãe pro outro, a menina ficou no meio da viela, de boca aberta, mãos estendidas no ar, não achei freio no guidão, passei sobre ela de comprido, de fora a fora, do pé à cabeça, e pude sentir cada contorno de seu corpinho sob os pneus. Olhando pra trás, vi pai e mãe correndo em direção à menina estendida no chão. E pedalei freneticamente, agora olhos fixos à frente, tentando me afastar o mais rapidamente possível. Alcançando a rua Cachoeira Dourada, virei à esquerda, passei a ponte do Arrudas, passei em frente ao Bar do Braga, atravessei a ferrovia, virei a Conselheiro Rocha à direita e, um longo quarteirão à frente, parei ali na calçada vazia do boteco do seu Inácio.
E olha que meu pai custou pra me liberar a Phillips. Precisou eu provar que já sabia andar de bicicleta, ele teve que me ver pra lá e pra cá pedalando. Só assim, com muitas recomendações, pude gadunhar a Phillips de quadro duplo. E veja no que deu!
Nessas alturas, o povo já deve ter juntado, polícia já chegou, a turma já estava lá rodeando e comentando. É perigoso até sair na imprensa! Não dá nem pra imaginar meu retrato no jornal: ‘JRC, o menor que matou a menina no meio da rua’.
São Paulo.
Deixo a bicicleta aqui no chão e vou? Puxa, mas é uma Phillips de quadro duplo! Uma bicicleta dessas vale dinheiro! Então é isso, eu vendo a bicicleta e vou pra São Paulo. De lá, mando dinheiro pro meu pai na prisão.
Feito o plano, tratei de pôr mãos à obra antes que a vontade chorar tomasse conta.
E quando fiquei de pé, resoluto, e levantei a bicicleta, vi que ia passando um senhor de calça cáqui e camiseta branca, vindo da rua Mármore. Incontinenti, assumindo um ar de experiente negociante, abordei: “Moço, o senhor me compra essa bicicleta? É que eu tenho que viajar para São Paulo, hoje ainda.”. O transeunte parou, olhou para a bicicleta, para mim, balbuciou algo ininteligível, e então disse: “Peraí, você não é Zé? Ué, menino, conheço seu pai e sua mãe! Uai Zé, São Paulo? Que negócio é esse, sô? Você tá com cara que tava chorando, Zé!”, e aí chorei mesmo, as lágrimas em borbotões incontroláveis, a cabeça baixa, uma mão no guidão, outra no selin, a bicicleta sacudindo aos meus soluços. Ele, calmo, apoiando uma mão macia na minha cabeça, falou: “Ô Zé, meu filho, eu conheço seu pai, ele é meu amigo, Zé!. Se você fez alguma coisa errada, se ele te bateu, você não pode pensar em fugir não, Zé. Vem cá, vamos até lá que eu ajeito as coisas pr’ocê com ele, viu?”
Eu balancei a cabeça em frouxa negativa, talvez tendo dito um frágil ‘não posso’ ou algo assim. Então, ele emendou “Zé, seu bôbo, alguém de fora ajudando, o pai sempre acredita, ‘cê vai ver!, vamo lá!”, e foi tirando devagar a bicicleta de minhas mãos.
Achei mais razoável do que seguir, assim de qualquer maneira, pra São Paulo, e ainda por cima desfazer da Phillips. Esse amigo de meu pai certamente intercederia a meu favor.
Ele me sentou no quadro, escorando a bicicleta no próprio corpo. A seguir, subiu agilmente na bicicleta e pedalou calmamente pela Conselheiro Rocha, de volta.
Entrando na Cachoeira Dourada, não vi movimento. Entrando na rua da vila, tudo estranhamente quieto. Parecia mesmo alguma armadilha. Cadê a menina morta que atropelei, meu Deus?
Eu sentia que, a qualquer momento, portas súbitas se abririam e policiais armados me cairiam encima: ‘Tá aqui o assassino fugitivo. Teje preso!.’
Mas, paramos em frente à nossa casa, abrimos o portão, entramos, ninguém no quintal, e apenas ruídos de movimentos na cozinha.
Parecia que eu estava em transe, duro, andando como um robô. O acompanhante deixou s bicicleta encostada no muro e chamou, já no meio do terreiro: “Ô de casa!”, ao que minha mãe saiu na porta da cozinha: “Zezé, meu filho, fiquei preocupada, onde ‘cê foi?”, e olhando para o moço “Oi, seu Jaime!”. Antes que precisasse responder, seu Jaime se despediu: “Eu só ajudei a trazer a bicicleta, o Zé tava meio cansado. Até logo, gente.”, e saiu fechando o portão, me deixando ali desamparado, com a impressão de ter sido traído
Minha mãe, em tom severo, ralhou: “Ô Zezé, meu filho, o que aconteceu pra você ter trombado na menina desse jeito, meu filho? Ela já voltou do Pronto Socorro, parece que fizeram um curativo na perninha dela. Mas ocê espera aí, que seu pai foi na casa dela, já voltou, está lá dentro e já-já vai ter uma conversa com’cê.”
Fiquei sentado num banco do terreiro, de cabeça baixa, sem saber se achava bom que não matei ninguém ou se achava ruim a surra que estava a caminho. Meu pai, para bater, era imbatível: chicotada, varada, paulada, ficava vergão nas pernas, às vezes tinha que banhar com água e sal. Já houve até uma martelada na barriga, que xixi saiu na hora. Uma coisa dessas estava me esperando hoje.
Nisso, meu pai apareceu na porta da cozinha. E já veio andando na minha direção, as mãos para trás, dizendo, em tom complacente: “Pois é, Zé, veja você que situação que filho deixa a gente. A gente chega cansado do trabalho, depara com uma situação dessas. A mãe da menina, sentida, me chamou lá pra ver o estrago que você fez na perna da garota. Lá, na cama dela, toda relada, machucada. Os tios me passaram uma lição, que não sei educar filho, que o Zé é muito levado, e mais isso e mais aquilo, e eu, o que?, tive que agüentar aquilo calado, baixar a cabeça, já pensou a vergonha?”
Não, eu não tinha pensado, mas tive enorme pena do meu pai, naquela situação, passando aquele desgosto, chegando do trabalho pesado que era o dele, cansado. Ele, ainda com as mãos atrás do corpo, continuou: “E se tivesse ferido sério, perdido a perna? Já pensou a amolação, a gente ter que reparar isso, já imaginou o arrependimento que você ia ficar, e a cara grande da gente, Zé?” E foi me dando uma angústia, um sentimento de vergonha, um ardente desejo que aquele momento acabasse depressa e que viesse logo a surra que se desenhava. E aquelas mãos escondidas: seria chicote, cinto, cabo de vassoura, alguma vara? Ele persistia: “E se a menina tivesse morrido, hem? Era sua mãe aí pelo mundo, coitada, criando essa meninada, seu pai na prisão, vocês passando necessidade e ninguém para ajudar; quem vai ajudar família de assassino? Pensou nisso antes de fazer suas besteiras?” Meu coração cortava de dó de meu pai, cheguei a ver ele sentado num catre por trás de uma grade, e senti enorme raiva de mim, prometi para mim mesmo, palavra de honra, ser o melhor filho do mundo nos próximos cinqüenta anos se Deus quiser, e quando começassem as chicotadas, ia agüentar caladinho, para servir de lição pra mim, pode bater à vontade, meu pai, que eu mereço. Pode até dar martelada, que dessa vez exagerei mesmo.
E ele, ainda com as mãos pra trás segurando sabe-se Deus o quê, continuou: “Então, Zé, meu filho, espero que agora você aprenda, que daqui pra frente você pense melhor antes de sair na rua, antes de sair por aí correndo com sua bicicleta. Essa brincadeira poderia sair muito caro pra nós. Tá entendido? Que isso nunca mais se repita!” Meneei a cabeça em triste assentimento. E, finalmente, ele foi tirando lentamente as mãos de detrás do corpo, eu de rabo de olho, na expectativa de ver o instrumento do meu castigo.
Mas, pasmem!, ele não tinha nada nas mãos. Meu Deus, eu não acreditava naquilo! O remorso me martirizando, me corroendo por dentro, uma raiva dorida de mim, um arrependimento amargo me fervendo o sangue, eu sentia que precisava urgente de uma sova, de uma surra, de um couro, de chicotada, de varada, de paulada! E meu pai virando as costas, com as mãos abanando, e caminhando, cabisbaixo, em direção à cozinha, talvez sem saber que acabava de me punir com a maior surra de toda a minha vida.
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