Rio de Janeiro, 1974, nós morando na av. Augusto Severo, em frente ao Aterro do Flamengo. Eu, perseguindo atividades teatrais, e Mozart, que se formara recentemente em Medicina.
Este caso é sobre uma grande aventura envolvendo o apartamento vizinho habitado por uma jovem senhora e seu marido militar, troncudo, marrento e bigodudo.
A meiguice da dona, uma cândida loura, de estatura baixa, longos cabelos e corpo gracioso, fazia-nos freqüentemente esquecer o marido. Em que pese todo o bigode do Sargento, e seus músculos de estivador. E Mozart e eu disputávamos cada bocado das atenções da loura.
Às vezes quem saia para comprar o pão voltava com regozijo: “Ela me cumprimentou, me perguntou como estava, até pôs a mão no meu ombro!”. Era demais! Isso significava que o outro, no dia seguinte, tinha de ter uma atenção maior para contar. Aquele clima de disputas em torno das pretensas atenções da loura do sargento bigodudo era, na verdade, uma brincadeira para passar o tempo. Lá fora, qualquer um de nós era sempre muito polido com a vizinha, que era sempre gentil e discreta.
O coração cortava de dó quando ouvíamos móveis arrastados e gritos abafados no apartamento vizinho. O sargento batia na esposa, cujo choro abafado, ouvíamos. O que poderia fazer de errado uma loura daquela, meu Deus? Mas no dia seguinte, impávida e linda, ela estava de manhã esperando o elevador, para sua matinal visita à padaria, como um de nós. E a disputa continuava. Apesar da ferocidade do bigode do sargento.
Chegou um certo domingo, dia de jogo da Copa do mundo, Mozart de plantão no Hospital, eu sozinho em casa – que não tinha televisão. Pergunto: como fazer para assistir o jogo do Brasil? E estava justamente pensando nisso, de volta da padaria e esperando o elevador para subir quando escuto a voz da loura: “Será que o Brasil ganha hoje?”. Falando comigo (o Mozart me paga amanhã)!
Só nós dois ali no hall, eu arrisquei tudo, com cara de coitadinho: “espero que sim, mas não tenho onde ver o jogo…” Ela, gentilmente, respondeu: “Ué, vê lá em casa, meu marido vai ficar no quartel o dia todo, e creio que não se importaria.”. O chão quase ruiu sob meus pés, as pernas bambearam, respirei fundo e falei assim bem no natural: “Ok. E está quase na hora, né?”, entrando no elevador. Ela arrematou: “Pois é, acho bom a gente já ir lá para ver.”
Estávamos assim, ela com aquele vestidinho de ficar em casa no domingo, eu de bermuda de calça cortada e camiseta. Mas, enfim, foi ela que convidou. Passamos pela porta do nosso apartamento, entrei rápido, deixei meu embrulhinho de pão, e voltei a tempo de vê-la abrir a porta e colocar a chave na fechadura por dentro, com aquela penca tilintante de chaves, e entramos.
Uma salinha resumida, com uma pequena mesa de fórmica e duas cadeiras. Ainda seguindo a vizinha, fui entrando pelo corredor. Após passarmos pela porta da exígua cozinha e do banheiro, desaguamos num amplo quarto, com armários embutidos e uma cama de casal bem composta, ao fundo da qual, contra o cortinado da janela, se via um televisor sobre mesinha de três pés. A um canto, encostado à parede, um pequeno baú fechado e coberto com um tapete felpudo. Ela disse “pode sentar no baú que eu vou ligar a TV.”, e eu sentei.
O Mozart jamais iria acreditar naquilo!
A imagem na TV mostrava jogadores perfilados, cantando o hino nacional brasileiro. Ela, sentada na cama, tricotava distraidamente um rendilhado amarelo. E eu procurando, freneticamente, as palavras que o James Bond usaria numa situação dessas (“como você fica bonita tricotando!”, ou “que tal fazermos coisa mais interessante que tricô?”, ou “vamos beber alguma coisa juntos?”, ou seja lá que for) e não encontrava nenhuma entrada para o castelo do silêncio dela.
O hino acabou, jogadores pulavam, chutavam bolas, faziam alongamentos, o locutor exaltava alguns nomes relacionados no vídeo. Eu estava louco de desejos e planos lascivos, mas não conseguia vencer a inércia da timidez.
Foi quando ouvi o abrir da porta da frente e o tilintar fino da penca de chaves. Ela assustou-se, empertigou-se na cama e fixou os olhos na TV. E passos, rítmicos passos de coturno, ressoaram ao longo do corredor. E comecei a procurar, rápido, uma saída racional. Estávamos no quarto andar; somando-se com o térreo, teríamos cerca de 15 metros de altura. Pular da janela, sem chance. A cama! Esconder-me sob a cama! Eu já vira isso acontecer tantas vezes nas novelas e seriados! Ou então dentro de um daqueles armários embutidos. Quem não viu ainda um mocinho assustado que escapa se escondendo dentro de um armário apertado? Olhei para ela, como que pedindo socorro. Mas ela, estática e pálida, estatelara os olhos na direção da TV.
Aí, subitamente, uma voz grossa trovejou no quarto: “vai sair ou quer que eu te retire?” E não tendo tido tempo de nenhuma saída racional, levantei-me devagar e caminhei na direção da porta do quarto.
Acontece que a porta estava literalmente ocupada: aquele corpulento e enorme sargento, com as mãos na cintura e os olhos flamejando, estava exatamente no vão da porta. Mesmo assim, caminhei na direção da porta. Alguma coisa haveria de acontecer. Jamais ouvi dizer que o relato de alguém caminhando em direção a um touro enfurecido não tivesse continuidade por falta de acontecer algo. E fui caminhando e aquele bigode foi crescendo na minha frente, o corpanzil dele ocupando todo o vão da porta, uma de suas mãos sobre o cassetete e a outra sobre o coldre do revólver. Algo me dizia que aquilo não terminaria bem.
E fui me aproximando, em passos que eu queria calmos, daquele vão de porta escurecido pela silhueta fardada, que não alterava sua posição espacial.
Enfim, já muito próximo daquele tenebroso vulto, finalmente meu algoz se virou de lado, com as costas apoiadas no marco da porta e certas protuberâncias anteriores projetando-se perigosamente no exíguo espaço que restou para minha passagem. Então naquele momento, naquele terrível lapso de tempo, vivi uma cruciante dúvida: passaria de frente para ele, atritando protuberância com protuberância, testa com bigode? Ou passaria de costas para ele, assumindo definitivamente minha derrota, relando bumbum com protuberância?
Eu poderia, agora, mudar o relato para salvar minha imagem – e a maioria de vocês acreditaria -, mas devo confessar que optei pela segunda forma: passei espremido, bumbum premido contra protuberância.
Já ouvi algo, nessas circunstâncias, sobre um tal bafo na nuca, mas não me lembro dessa parte. Passado, literalmente, o primeiro aperto, ganhei rapidamente o corredor, que percorri lépido em busca da porta de saída. E tratei de rodar, afobado, aquela chave para destrancar a porta. Mas a aventura não terminaria ainda: a chave não rodava de jeito algum. Por instantes, pensei que, no afogadilho, estaria confundindo o sentido do movimento. E, pior, com a outra mão sustentava a penca de chaves para abafar o seu barulhento tilintar. Mas, como que por pirraça, aquele tinir de chaves reboava naquela sala e me dava a impressão que até na praia de Botafogo ouvia-se o ruído das chaves. E quando mais eu tentava, mais a chave se negava em girar para me libertar daquele sufoco.
Foi quando ouvi os passos no corredor. Aquele barulho de passos de filme de terror, rítmicos, de pesadas botas que se aproximam, naqueles momentos de pesado suspense. Num derradeiro e estabanado esforço, tentei novo movimento com a chave, que soltou-se da fechadura e despencou. Como que em câmara lenta, fiquei olhando aquele ruidoso monte de chaves girar no espaço e chocar-se estrondosamente com o chão, ecoando longamente pelas paredes da sala.
Então, um enorme e peludo pulso surgiu na minha frente. Tendo interpretado como uma gravata iminente, retesei os músculos no aguardo do aperto fatal. Mas aquele pesado braço desceu em direção à maçaneta e abriu a porta num safanão, ao mesmo tempo que aquela voz rugia: “A porta já estava aberta, roceiro!”.
Dei alguns trôpegos passos para fora, e, entre aliviado e humilhado, naquele pequeno instante de pausa, de costas para a porta, ouvi um estrondo seco que reverberou nas paredes do hall. Estático, fiquei aguardando a dor no local do tiro, olhando fixo para a frente. Mas como não senti nada diferente, olhando discretamente na retaguarda e vendo a porta fechada, compreendi que o estrondo todo foi da porta fechada a pontapé.
E, na cálida brisa do hall, respirei fundo apalpando a camiseta molhada de suor.
Logicamente nunca contei ao Mozart essa roubada. Ele vai saber agora, quando ler aqui.
*************************