(1975)
As nossas asas. Há muito não ouvimos o ruflar das nossas asas. Tampouco vimos a aurora com o sabor dos eucaliptos. Estamos limitados por um horizonte finito e circular com as extremidades num mesmo ponto. Grades: elas estão à nossa volta e dentro de nós. O nosso interior tende a ser uma cópia do nosso exterior. Víveres nos são trazidos por um andar trôpego e resfolegante que nos traz sempre angústia e medo. Medo de, um dia, esse andar trôpego não vir e ficarmos aqui soterrados em nós mesmos, mortos e presos à liberdade unilateral do nosso interior. E ele vem, subalterno e livre, lá do fundo do quintal triste. Numa mão a vasilha com alimentos e, na outra, dedos disformes e tímidos, tateando uma necessidade incrível de segurar algo mais crível que o nada. Engancha os dedos na vasilha e a apóia de encontro ao peito para impedir, com a mão livre, que saiamos pela porta agora aberta e tentadora. Mas nunca sairíamos. Teríamos sempre a consciência presa à certeza de que existiria alguém a querer-nos presos. A liberdade que queremos inclui a exclusão da permuta: liberdade total é conseqüência natural e não efeito de força. Ele coloca a vasilha de alimentos à nossa disposição e fecha novamente a portinhola. E se vai, assoviando e livre, alimentar seus sonhos libertinos, enquanto nós aqui ficamos, acalentando nossos pesadelos cativos.
De uma certa feita, veio um beija-flor. Um pássaro brilhante, bailando, dependurado na sua própria ânsia de viver, voando, revoando, esvoaçando. Ficamos, assim, estáticos, ali, às grades, hipnotizados e nos transportando sempre para aquele vôo simétrico e maravilhoso, o corpo ereto, alternando sempre um subir e descer das rápidas e suaves asas, numa demonstração impecável de energia e liberdade plenas, como um projétil sem pressa e sem alvo. E o levou assim a brisa, a brilhar e bailar como se tivesse o corpo banhado de gotas de orvalho.
A partir daí, aquela simétrica liberdade – porque toda liberdade tem que ter simetria – ficou com os nossos limites a despertar o nosso interior. E no dia seguinte quando veio o andar trôpego, já sabíamos que, na realidade, pela simples razão de o mantermos a nos prender, nós é que o mantínhamos preso. Por isso, a portinhola bastou aos nossos corpos sedentos de liberdade da ausência do andar trôpego. Ele foi ficando lá embaixo, a nos olhar, calmo, e a sorrir. E o porquê dele estar rindo, entenderíamos a seguir.
No infinito, pássaros, um bando deles. Era-nos difícil o equilíbrio depois de tantos desequilibrados tempos e nosso desajeitado movimento bastou para assustá-los. Éramos inimigos a partir do estranho ruflar das nossas asas cativas. Predadores atentos nos espreitavam com hostilidade, evidenciando toda nossa insegurança e fragilidade. Ao trinarmos, o nosso canto amedrontou a nós próprios. Éramos inimigos de nós mesmos. Jamais seríamos mais que párias para a própria idéia de sermos livres. Liberdade, só se aprende praticando. Como tudo na vida. E como na vida tudo, já não tínhamos mais do que remotas teorias inativas forjadas pelo desejo da prática. E, mirando lá embaixo nossa gaiola, tivemos de reconhecer que estávamos indefesos e nus. E que tínhamos de procurar abrigo.
E assim, nus e indefesos, entregamo-nos de corpo e alma ao andar trôpego que, como nunca soubéramos, amávamos tanto!.
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