Sempre me perguntei porque o Natal significou para mim, até recentemente, melancolia e recolhimento. Dois possíveis motivos, entre outros: primeiro, aquela freqüência com que Papai Noel se esquecia de muitos de nós lá da vila, naquela época; segundo, que era tempo de chuva, e o rio Arrudas às vezes cumpria a ameaça de invadir nossas casas lá na Vila do Cardoso, em Santa Efigênia. Ali, atualmente, entre a rua Niquelina e a via férrea, é o trecho mais novo da avenida dos Andradas.
Este caso é da época do Natal, que estava se aproximando.
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A nossa vila tinha duas vielas, que se encontravam em T na frente da minha casa. Aquela via paralela ao Arrudas ia, do Córrego Cardoso, num extremo, à rua Cachoeira Dourada, no outro. Nossa casa ficava na metade, ali onde, hoje, há um viaduto com acesso ao bairro Santa Tereza. A outra viela, saindo da frente da minha casa, dava passagem para a rua Niquelina, logo depois da pontinha sobre o Córrego do Cardoso que, alguns metros abaixo desaguava no Arrudas. As margens desse rio eram a principal referência para nossas brincadeiras. Eu gritava pra minha mãe, já do portão: “Manhê, vou ali!”, e saia fechando o portão. ‘Ir ali’, não era mentira, não se mente à mãe. A gente pegava uma das vielas, saia na Cachoeira Dourada e, alguns metros para a direita, dobrava à esquerda e, pronto, estava no paraíso: um aterro recente na beira do Arrudas, nosso parque de diversões. Várias brincadeiras possíveis: tomar distância lá em cima, correr até a beira do aterro e, qual Super-homem, voar no vazio para afundar na terra macia, metros abaixo. E depois subir de novo, escalando aquele pico Everest. Também se podia chegar na beirada e, deitado, rolar, rolar na ladeira íngreme de terra fofa, até sentir a água do rio. Uma delícia! Outra variante seria descer de cambalhotas terra abaixo, mas isso eu só fazia se fosse desafio de titãs, pois me dava tonteira. E tinha a disputa de corrida de xixi. Ficávamos de pé no alto do aterro, pipiu para fora, urinando aterro abaixo. As urinas desciam inventando desfiladeiros no meio da terra, até que a absorção interrompesse as trajetórias. O vencedor era aquele cujo xixi fosse mais longe. Naqueles exultantes momentos, éramos importantes senhores em férias de aventuras, e ninguém lembrava de enchentes ou dos esquecimentos de Papai Noel.
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Naquela tarde, aproveitei uma estiagem provisória e chamei o Chuca para brincar. Fomos para o paraíso. Descemos o aterro aos pulos, pernas atolando na terra vermelha, sentamos na beira da água e deixamos os pés dentro daquelas águas frias que solapavam, aos poucos, a terra que ali chegava. Nisso, por instinto, olhei para trás no alto do aterro. Duas senhoras de aparência distinta nos observavam. Eu as reconheci. Eram as voluntárias da LBV, que vinham todo fim de ano para cadastrar meninos da Vila. É que, na tarde do dia 25 de dezembro, juntavam os meninos de algumas vilas da região lá no Campo do América, que era atrás do Parque Municipal, e ali, numa fila enorme, iam distribuindo presentes para nós. Os meninos ganhavam um carrinho ou uma fugaz bola plástica. As meninas ganhavam uma bonequinha ou panelinhas. Tudo, em nome de Papai Noel. Ai, voltávamos juntos para casa, comparando os brinquedos. E víamos, ao longo das ruas de Santa Tereza, nas casas ricas, os garotos com carrões brilhantes e patinetes de alumínio.
Uma vez, falei para o Niquim: “Engraçado como Papai Noel dá brinquedos pobres para os pobres e brinquedos chiques para os ricos.” Ele raciocinou: “Mas tem lógica. Os ricos não se conformariam com brinquedos simples e os pobres não saberiam como brincar com os deles.”
Portanto, lá estavam as madames que, vistas assim de baixo, com seus vestidos estampados e seus colares volumosos, pareciam dois gigantes a nos observar. E aconteceu uma coisa interessante naquela hora. Vendo que ambas as senhoras enxugavam os olhos, Chuca disse: “Olha, elas estão chorando! Por que será?”. Eu, tomado de súbita compaixão, aventei: “Será que perderam algum parente?”, e Chuca completou: “É, mas olhando menino, o que faz dona chorar assim, é filho com doença grave, viu?”. E subimos, comovidos, em direção às madames choronas. Assim que chegamos no alto, a mais gorda falou: “Estamos aqui para cadastrar vocês, filhos.”, enxugando os olhos, tomando seu bloquinho de anotações. A outra, justificando: “Desculpem, viu?, mas vendo vocês aí, assim, nessa terra imunda, na beira do Arrudas, a gente ficou triste.”
“Caramba!”, exclamaria o Chuca mais tarde, “A gente satisfeito de tudo, e a mulher chorando por nós! Já viu? Essas donas são doidas.”
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Quando voltamos e o Chuca entrou na casa dele, encontrei o Tóia me esperando na porta de casa, já me avisando tão logo me viu: “Eu pedi a roupa, viu?”. Ele se referia à indumentária de Super-homem, que ele pedira ao Papai Noel.
Acho bom apresentar Tóia. Imagine um menino franzino, magricela, pernas magras arqueadas para fora, cabeçudo, desdentado, às vezes babando, olhos grandes, arregalados – como em perene estupefação -, cabelo louro ralo e liso margeando uma testa grande. É o Tóia. Os seus irmãos são todos mortais comuns. O Bil é gordinho, lisinho, bonitinho; a Edwirges é apenas magra, mas, de resto, é uma mocinha habitual, com suas madeixas ruivas; o Lino é grandão, algo desengonçado, mas também é normal. E assim por diante, todos os outros irmãos. Só o Tóia saiu assim, como um duendinho pagão.
Para todos os meninos lá da vila, o Tóia era o eterno pegador, o bobo da roda, a cabeça boa para piparotes. Mas, comigo não. Eu o acolhia, eu dividia com ele muitos segredos, eu andava com ele para todo lado, ele me ajudava a vender Q-suco no campo de futebol aos domingos. Sem ganhar nada. O Tóia era meu escudeiro. De modo que, daqui pra frente, quando eu mencionar o Tóia, protagonista do desfecho deste caso, pensem nisso tudo.
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Naquela época em que televisão era uma vaga idéia distante, jornal era para poucos e rádio era uma disputa entre Bentinho do Sertão e Caxangá, o que nos encantava era o mundo dos gibis. O Super-homem, o Batman, o Mandrake e o Fantasma povoavam nossa fantasia. Por sinal, o vício dessa literatura já me custou bons arrancões de orelha. Eu saia de fininho, gibi oculto sob a camisa, mãe pensando que eu estava estudando para a prova. Saia no portão e, do encontro das 2 vielas, pegava à esquerda e, enfrente à casa do Tóia, sentava numa sapata de cimento ao pé de um poste, de costas para nossa casa. E iniciava aquela deliciosa leitura (mas, antes, olhava para trás: mãe ainda não vinha; quem viesse lá de casa, veria o poste e um pouco dos meus ombros, não dava para ver o que eu estava fazendo; se eu fosse rápido, esconderia a revista e pronto). E o Clark Kent é chamado para fazer uma matéria sobre um estranho objeto voador, nos arredores do Planeta Diário. Era um truque do Luthor, que queria pegar o Super-homem (e olho para trás de novo, e não vem ninguém). E o Clark Kent, em meio à multidão, não pode mostrar sua identidade secreta. E o Luthor aparece no veículo voador e vai atirar um veneno químico sobre a cidade (e, de novo, viro o corpo por trás do poste e olho para trás: barra limpa). E é preciso uma ação ultra rápida do Super-homem, que está disfarçado de Clark Kent. E a aventura vai me absorvendo. O canhão de gás mortal está prestes a ser disparado, e poderá ser uma tragédia sem precedentes. Luthor, que misturou pó de kryptonita no gás venenoso, sabe que o contato do Super-homem com esse material enfraquece seus super poderes. E o Clark Kent tem uma idéia brilhante e salvadora…
“Muito bonitinho, hem, seu fujão?”, é minha mãe que chega de súbito por trás, e me ergue pelas orelhas e me conduz para casa aos gritos de “ai, mãe! Ai, ai mãe!”, semi-suspenso, pisando apenas com as pontas dos pés. E matéria escolar nenhuma entraria na minha cabeça naquele dia, por causa da ansiedade para conhecer a idéia salvadora do Clark Kent..
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No dia que mostrei para o Tóia um escudo de Super-homem preso ao meu peito, oculto sob a camisa, ele ficou excitado. Ele pensava que isso me dava super poderes e confirmei que, realmente, eu podia até ver através de paredes com visão de raios-x. Ele me olhava com grande admiração: “Uau, meu!”, arregalando mais os olhos e babando, com a boca aberta. “E se você tivesse a roupa, hem?”, fantasiou ele. Eu mantive o tom: “É, aí eu poderia até voar…”, e abri um arco com a mão mostrando o céu. Ele acompanhou meu gesto, e ficou alguns segundos ali parado, vendo o vôo que mostrei. Deve ter sido naquela hora que ele pensou naquilo que seria a razão tragicômica do desfecho deste caso.
E ele estava ali no meu portão, risonho, mostrando as gengivas úmidas. “Então você encomendou a roupa do Super-homem ao Papai Noel, Tóia?”, perguntei. Ele balançou a cabeça energicamente para cima e para baixo. Eu, no fundo, duvidava que uma coisa cara dessas viesse parar na mão do Tóia. Por isso, imagine o meu susto quando ele me chamou lá em casa, na manhã seguinte à noite de Natal, postando-se do lado de fora, perguntando, assim que abri o portão: “Que tal?”. Mesmo sendo um raquítico menino desdentado e cabeçudo, aquela visão foi inesquecível: ele com as mãozinhas na cintura e as magras pernas arqueadas afastadas, peito estufado, o vento balançando obliquamente a capa vermelha por trás daquela roupa colante, azul e linda, seu ralo cabelo louro esvoaçando por sobre a cabeça. “Tóia, meu!”, admirei, diante daquela figura. “Quero pular da pontinha!”, disse ele, apontando para o final da passagem para a rua Niquelina, onde havia uma pequena ponte sobre o Córrego Cardoso. E saiu correndo para lá. Eu, para avisar minha mãe, entrei no quintal e fui até a porta da cozinha: “Mãe, vou ali e já volto.”, e sai em perseguição ao Tóia, que ganhara terreno. Umas poucas dezenas de metros à frente, curva em S na casa do Ademar, e um suave declive chegando na pontinha. Dali, já avistei o decidido Tóia pendurado pelo lado de fora da pontinha, de costas para o corre-mão único, que ele segurava por sobre os ombros, calcanhares no beiral de cimento. Ao me ver, gritou de longe: “Vou posar lá naquela pedra redonda!”, e, sem ouvir o “Não, Tóia! Não, Tóia!” que eu gritava, aflito, enquanto corria para a pontinha, deu o impulso final sobre aquele vão de três metros. E pulou no ar.
Na primeira fração de tempo, os olhos fixos num ponto à frente, esticou os braços horizontalmente, mas como algo o puxasse inexoravelmente para baixo, esperneou energicamente, bateu braços e pernas, esboçou até um movimento de bater asas, mas tombou derrotado, de quatro, dentro do córrego, espirrando água para todo canto. Ali, de joelhos e mãos no fundo arenoso, uma água fria lambendo-lhe a barriga, ele exclamou: “Puxa!”.
Por onde andará hoje o Tóia, que me deixou, por tantos anos, com o peso daquela frustração na consciência?
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